Os humanos com 70, 80 ou 90 anos vivem aposentados. Sem precisar trabalhar. Recebendo medicamento, assistência médica e alimentação adequada para a idade. Familiares resguardam o idoso da chuva, do vento, do frio e do calor. E até contratam cuidadores para ajudar na tarefa de dar uma velhice boa para essa pessoa que trabalhou durante tantos anos, e agora está sem forças.
Uma hipótese absurda: alguém retira à força uma pessoa idosa desse ambiente de cuidado, obrigando-a a trabalhar em atividade que exige grande esforço físico. Trabalho mais pesado do que aquele que exercia quando era jovem. E agora sem alimentação adequada, sem cuidados médicos e dos familiares, sem medicação, sem ter um abrigo que a proteja do calor, do frio, da chuva. E sendo açoitada a cada vez que não tiver mais forças para continuar o cruel labor. Até morrer.
Nem é preciso dizer que o sujeito que fizer isso será preso por mais de cem anos pelos crimes de tortura, maus tratos, violência psicológica, sequestro, trabalho análogo à escravidão, lesões corporais e homicídio qualificado. Crimes hediondos.
Pois é. Com os cavalos idosos a situação do segundo parágrafo não é mera hipótese; acontece de verdade. Sem punição. E parece normal. A sociedade aceita que se maltratem os cavalos idosos da maneira mais covarde e cruel. Até à morte.
De regra os cavalos são usados no serviço de repontar o gado no campo, em rodeios, cavalgadas ou para montaria como lazer. Isso não é problema, pois tais atividades não são pesadas para um cavalo ainda novo, forte e bem alimentado.
O problema é quando os cavalos envelhecem. Aí muitos deles são destinados para as carroças nas cidades. Uma crueldade inominável. Todos os cavalos que você vê puxando carroças pela cidade são idosos, doentes, desdentados e subnutridos. Porque seu preço irrisório é o único que o carroceiro pode pagar. Deveriam estar aposentados e descansando em seus últimos dias de vida. Mas é exatamente nessa frágil condição que são colocados para realizar o trabalho mais pesado para um cavalo: puxar carroça com carga de qualquer coisa. Entulho, lenha, mudança, pedra, areia, terra, pasto. Dia após dia. Às vezes até tarde da noite. Sem cessar. Até morrer por causa dessa crueldade. Com fome, anêmicos, cheios de parasitas que lhes causam ainda mais fraqueza, passando sede, sofrendo dor das feridas provocadas pelas cordas e correntes que lhe cortam o couro já sem músculos por baixo. Com dor nos dentes frouxos, quebrados e cariados, e ainda com um ferro (o freio) enfiado na boca para o carroceiro golpear a cada instante. Carroça pesada, feita “a facão”, com rodas de automóvel pouco calibradas para ficar macio para o carroceiro de 100 quilos que sem piedade ainda vai em cima da carga.
E esse cavalo velhinho e fraco obrigado a carregar peso não recebe alimentação adequada. Precisa pastar o dia inteiro, mas o carroceiro nem tem uma pastagem para ele. Precisa comer no mínimo 5 quilos de ração especial por dia, mas o carroceiro não tem dinheiro para comprá-la. E ração com nutrientes especiais para cavalo idoso custa em torno de R$ 275,00 a saca de 40 quilos. Dois cavalos comem 300 quilos de ração por mês, o que custa R$ 2.062,50. Com mais o feno, medicamentos e veterinário, o carroceiro precisa gastar no mínimo R$ 4.000,00 por mês para manter dois cavalos. Mas o carroceiro da cidade é sempre uma pessoa pobre. Então, como ele faz? Não alimenta adequadamente os cavalos. Apenas os coloca em um terreno baldio para “pastar” capim contaminado e sem valor nutritivo. Mas cavalo idoso já não tem dentes aptos a pastar e mastigar pasto. Mais. O carroceiro não abriga os animais do frio, do calor, da chuva, não trata seus cascos carcomidos pela idade, nem consegue pagar medicamentos e veterinário.
E nessa tortura cruel os cavalos de carroça terminam seus dias definhando pelas ruas. Aos olhos de todos nós.
Por Dr. Nilton Kasctin Dos Santos (Promotor de Justiça e Professor)